Um dia saí para caminhar. Num desses momentos em que queremos largar tudo e sair correndo, saí.
Neste dia entendi que, quando começamos a caminhar, não sabemos onde nossos pés nos levarão.
Caminhando, refletia sobre a natureza de cada ser, andava em meus pensamentos. Lembro de todo caminho mental percorrido, mas não recordo do caminho que meus pés trilharam.
“Um escorpião queria atravessar o rio, incapaz de nadar, pediu ajuda a um sapo. O sapo, desconfiado, perguntou como poderia ajudar, ao que o escorpião respondeu:
- Subo em suas costas, e você me leva para o outro lado do rio!
- Tu és um escorpião, se sobes em minhas costas vai me picar e morrerei - disse o sapo, afastando-se.
- Não seja estúpido, não sei nadar. Se te pico, morrerei afogado - contestou o escorpião.
"Era verdade, ponderou o sapo, então aceitou, tomando o cuidado de entrar na água antes de o escorpião subir em suas costas. Assim iniciaram a travessia e tudo parecia bem. O sapo, tranquilizado, pensava no mau juízo que fez do escorpião ao julgá-lo pela aparência. Se desculparia com ele assim que chegassem ao outro lado. Mas não teve oportunidade: ao meio do rio, o escorpião picou-o.
- Estás louco? Tu também morrerás! - Disse o sapo, lutando com a dor e o espanto daquela traição.
- Desculpe. É minha natureza! - Lamentou o escorpião, enquanto se afogava."
"Que natureza é esta que atenta contra a própria vida?"
Me questionava e refletia, enquanto caminhava.
“Não se pode exigir de alguém aquilo que ele não tem para dar.” A frase surgiu em minha mente, não lembro onde a li, mas pareceu encaixar-se ao contexto de minhas reflexões e senti aproximar-me de algum entendimento.
Sentia a alegria do entendimento, embora não soubesse o que eu havia entendido.
Naquele momento senti o sol em meu rosto e olhei para ele: estava tocando o horizonte na minha frente, ofuscou minha visão. Estava se pondo, o que significava que eu já estava caminhando há mais de 5 horas. Ao dar-me conta do tempo, imediatamente meus pés doeram. Parei em um posto na beira da estrada para tomar água, sentei e tirei meu tênis.
Um senhor sentou ao meu lado e começou a falar comigo, como se me conhecesse.
- Gosto de vir aqui no pôr do sol, a vista é ótima, ajuda a esquecer os problemas. Veio para ver a vista ou para esquecer os problemas?
- Acho que os dois, estava caminhando e o pôr do sol me chamou. Respondi, achando graça dessa naturalidade que algumas pessoas têm ao conversar com estranhos.
- Estamos há 10 quilômetros de qualquer coisa, tem que gostar de caminhar. Comentou sorrindo.
- Faz parte da minha natureza; Falei, já querendo encerrar a conversa.
- Ah, a natureza do ser. Alguns dizem que é imutável, mas a minha mudou, ou melhor, minha mulher mudou a minha. Ele riu e começou a contar uma estória.
“Um lenhador vivia no meio da mata, com seu filho pequeno. Sua mulher havia morrido. Tinha também uma raposa, com quem tinha uma relação de profunda amizade. Quando saía para trabalhar, deixava ela cuidando da criança.
Todos lhe diziam que não se podia confiar em raposas, que são animais traiçoeiros, que um dia ela atacaria seu filho, era a natureza dela, não que fosse má, mas era sua natureza, era inevitável. O lenhador confiava em sua amiga raposa, mas foram tantas as vezes que lhe falaram mau das raposas, que passou a desconfiar.
Um dia chegou em casa e seu filho não veio recebê-lo. Chamou-o e não teve resposta. Foi então que viu a raposa saindo do quarto de seu filho com a boca suja de sangue. Lembrou todas as vezes que lhe avisaram que isso aconteceria.
Consumido pela culpa de não ter dado ouvidos às pessoas preocupadas que lhe alertaram, pela dor de perder seu filho e pela raiva da traição daquele animal que ele prezava como a um amigo, tomou seu machado e matou a raposa.
Abalado, secou as lágrimas, e, em desespero, foi procurar seu filho. Encontrou a criança dormindo tranquilamente em sua cama. Estava bem, e, ao lado, encontrou uma víbora que havia sido morta pela raposa.”
- Minha mulher me contou esta estória. Disse ele distraidamente. Voltou-se para mim e continuou:
- Logo depois de contar a estória, ela me olhou nos olhos e disse que estava grávida. Naquele momento senti o golpe do machado e minha antiga natureza morreu. Soube que minha vida, a partir dali, seria matar cobras e proteger meu filho. Também entendi que ela me mataria se algo de mau passasse com nosso filho. Concluiu e gargalhou divertidamente.
Disse que seus filhos estavam crescidos e não precisavam mais de sua proteção, mas ele já era uma raposa velha domesticada, então dedicava-se a cuidar de sua neta e tinha uma profunda gratidão à sua mulher por ter matado sua natureza de escorpião para que pudesse descobrir sua natureza de raposa.
“Quantas naturezas têm o ser humano?”
Ouvi a pergunta em minha mente, enquanto refletia sobre a distância que havia entre o julgamento que se tem e a verdadeira natureza de um ser.
Agradeci àquele senhor, calcei meu tênis e iniciei meu caminho de volta.
Desde então, quando sinto vontade de largar tudo e fugir, eu fico.
Se der as costas, levarei comigo o registro daquele momento; se ficar, posso ver o desenrolar da história.
Para bem ou para mal, prefiro ver com meus próprios olhos.
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